quarta-feira, 4 de agosto de 2010

NA MARGEM ESQUERDA DA RIBEIRA
PREFÁCIO

Escrever este prefácio honrou-me particularmente.
O ritual não podia ser melhor nem mais completo. A escolha do lugar, o espaço, invulgar pela envolvência da paisagem, a música que o barman escolheu: Deseja que ponha música? Se faz favor. Qual desejaria? Música clássica. Tem? Não, não temos.
Então uma à sua escolha, sugeri.
Dois minutos depois, a voz de Joan Baez no tema Diamonds and Dust, adoçava-me a inspiração naquele estar envolvido em profundo recolhimento, tão bucólico quanto poético e o aprazível local “Ares de Serra”, da Serra de Nogueira, transportaram-me para a Serra do Reboredo, onde a escritora bebeu a singularidade do seu dizer e do seu sentir, tão simples quanto comovedores, que ora nos fazem sorrir, ora emocionar constantemente ao longo de toda a obra.
Há mais de 30 anos que nos conhecemos.
No tempo de estudantes já existia algo que nos aproximava. Mais tarde, a luta pela igualdade e direitos das mulheres, fortaleceu-nos de novo as cumplicidades num programa radiofónico onde convidei várias vezes a Idalina.
Penso que sempre a conheci e não a conhecia, até hoje, que o seu escrito me surpreendeu pela coragem e rigor da discrição autêntica da sua infância, sem nada esconder daquilo que sofreu e amou, numa dádiva descomprometida e descomprometedora do seu exemplo de vida que nos sensibiliza e nos atrai cada vez mais nesta leitura.
Ao lê-la, lia muito de mim, apesar dos grandes afectos de que sempre fui alvo na minha infância, por parte dos meus familiares e de toda a gente das comunidades onde cresci, mas que à Idalina nem sempre suavizaram os primeiros anos de vida.
E pensava eu, comparativamente, como essas agruras não lhe talharam outro carácter, antes porém lhe acentuaram a bondade e discernimento, a inteligência, a sensibilidade para as grandes causas sociais e a dedicação à vida, dela e dos demais, familiares e amigos, colegas e utentes que nutrem pela autora a simpatia e o respeito que todos conhecemos.
Talvez o extraordinário labor do fantástico mundo das abelhas lhe tivesse dado o exemplo de vida que hoje é. Talvez a constante perseverança pelos caminhos da vida, onde a alegria de viver é manifesta na entrega à assumida responsabilidade de querer ser feliz, onde a autora, numa atitude de profunda simbologia telúrica, semeia à sua volta uma natural e espontânea convivência em todos os contextos onde se movimenta, aplanando os difíceis percursos que a levariam a constituir-se em ser vivificante, que incute nos outros um forte respeito pela vida e pelo sagrado dever de, também pela vida, procurarmos sempre todo o bem que ela contém e que gratuitamente nos oferece.
Mas o livro, este livro é um documento que regista a história de uma menina e sua família, sempre pautada pelos valores da honradez, da seriedade e do trabalho à volta do mundo rural e da sua infância e também na sublime e sagrada arte da luz, o fabrico artesanal de velas, que, ao tempo, eram somente de uso religioso, pelo seu elevado custo.
E os sonhos da menina e de todos os meninos filhos de cerieiros, talvez ganhassem asas mais depressa, porque enformados nas esculturas de cera que seus pais faziam para o cumprimento de promessas aos Santos de todas as devoções por este País fora, engalanado de procissões e de miséria social, onde a fome e o obscurantismo deixavam à mercê da sobrevivência, as portuguesas e os portugueses que aguentaram um País arruinado, na longa espera dos alvores de Abril.
Este livro é um retrato social, económico, cultural e educativo de um tempo que foi de nós todos e que fez de nós os obreiros incondicionais da Liberdade, do progresso e desenvolvimento de uma mentalidade individual e colectiva que havia de devolver ao País a dignidade perdida, vencendo 50 anos de repressão, de analfabetismo e de opressão.
É um retrato fiel a preto e branco, mas também a cores, a cor que animou sempre a alma destas crianças que fomos todos nós, os perseguidos e mal-amados do regime, os filhos dos que apoiaram Humberto Delgado e o fizeram ganhar as eleições em pequenas freguesias rurais, ou disseram sempre aos seus filhos que os livros proibidos só se liam em casa, sem ninguém saber, os que tinham um código de vida que não permitia grandes convívios na praça, no adro, ou pelos caminhos que levavam aos lameiros e outros pastos, no nosso mister de pequenos guardadores de rebanhos.
Este livro é o livro que eu nunca escrevi, mas que vivi e por isso considero-o também meu e de todos quantos o viveram e o lerem nessa lembrança, filhos adoptivos das cidades que hoje povoamos à custa da desertificação do nosso muito amado e saudoso mundo rural que nos formou e educou na coragem e valentia, na esperança e no ardor da luta por um País livre de todos os males que ajudámos e ajudamos a construir e que queremos preservar de todos os retrocessos, para que as palavras Democracia, Liberdade e Paz Social, se escrevam para sempre com a força multicor da nossa bandeira. Um País colorido, onde o preto e branco simbolizem apenas o respeito que nutrimos pelo nosso passado e pela História da Humanidade de que somos actores e também autores.
Obrigada, pois, à autora e estimada amiga, por me ter concedido este privilégio.
Faço votos que o teu primeiro livro seja mesmo o primeiro de muitos que ainda nos vais oferecer, pois as tuas qualidades humanas, profissionais, sociais, culturais e literárias, exigem-te que nos ofereças tudo o que sabes, tão bem, revelar.
Entrei no Bar para terminar o texto. Chovia lá fora. O barman, apercebendo-se que finalizara olhou para mim e pôs de novo o tema de Joan Baez, Diamonds and Dust. Como explicar esta atitude pela escolha acertada e repetida desta tão singular e apropriada música de fundo que me inspirou estas palavras?...
Que Divina e quão feliz coincidência!!!...

Bragança, 7 de Julho de 2004
Rita Pires

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