sábado, 30 de maio de 2020

ENSAIO: Barroso: Resgate da Memória de Bento da Cruz


ENSAIO
REFLEXÕES SOBRE
BARROSO: RESGATE DA MEMÓRIA DE BENTO DA CRUZ
DE
ANTÓNIO CHAVES

ANTÓNIO CARNEIRO CHAVES, nasceu em Negrões, concelho de Montalegre, a 20 de novembro de 1943. Licenciado e Mestre em Economia e Economia Europeia, respetivamente, foi correspondente da RTP e do semanário O Jornal, quando viveu na Bélgica. Foi docente do ensino superior, empresário, colaborador da imprensa regional, escreveu monografias e argumentos e obras ficcionais sobre o Barroso e esteve ligado a várias associações da área da cultura. Conheci-o enquanto Presidente da ALTM.
BENTO DA CRUZ, nasceu a 22 de fevereiro de 1925 na aldeia de Peireses, concelho de Montalegre e faleceu na cidade do Porto em 25 de Agosto de 2015, com 90 anos de idade. Exerceu medicina ao longo de cerca de 50 anos, mas ficou conhecido, sobretudo, como romancista. Descreveu de forma admirável a aldeia da sua infância e como era a vida de então – as gentes, a terra, os bichos, a paisagem, deixando-nos imensa obra literária. Infelizmente não o cheguei a conhecer…

Que dizer então deste livro de António Chaves?
Barroso: Resgate da Memória na Obra de Bento da Cruz?
Para mim, é o seu Grito de Ipiranga para os novos tempos!
Tendo por base a obra de Bento da Cruz, deu-lhe o seu cunho pessoal, a sua visão do Barroso, de Portugal e do Mundo!
Mais que uma obra de lembranças ou resgate de um autor, Bento da Cruz, "o maior escritor do Barroso", nascido na aldeia de Peireses em 1925, este, é um livro de história, filosofia, economia, cultura e religião, sociologia e política, etnografia e antropologia.
Uma reflexão da vida do Barroso, e, da sua terra natal, Negrões, na interrelação com a obra e vida de Bento da Cruz, mas que vai para além dela?
– pergunto a António Chaves:
Não é a sua história evolutiva numa análise comparada com a de Portugal e da Humanidade?
O Barroso e suas gentes, têm uma nova visibilidade, globalizante, interrelacionada, e não fechada em si mesma, pois o micro também é macro, e vice-versa?
O seu amor à sua terra e gentes, ao Barroso, levou-o a escrever sobre uma miscelânea de temas e conteúdos, para, tal como o seu povo: "saber quem era, para onde ía e para onde queria ir"?
Um livro para ler e apreender até ao fim…
Porque não dizer, tal como Bento da Cruz, que "o Barroso é um paraíso"?
Na subjectividade de cada um de nós, temos sempre algo: lugar ou pessoa, situação, estado emocional, que é o nosso paraíso na Terra! Podemos dizer que é utopia distorcida, negação da visão da realidade tal como é, ou a profunda liberdade íntima? Ou as duas coisas?
Na vida actual e esquizofrénica de cada um de nós, emerge na sua essência esse desejo de "mudança", porque nela habita a insatisfação dos indivíduos.
E porque não acentuar "a grande meta" de vida do escritor? :
"Assinalar a sensibilidade, os sonhos, o amor, as formas de vida, a entrega ao próximo e construir com esses materiais um verdadeiro hino à vida"?
Tal o fez há quase um século atrás, com "rigor e perspicácia" esse escritor realista, que foi Bento da Cruz, pela sua análise crítica e descrição das múltiplas vidas anónimas da população do Barroso?
Como preferenciando as suas palavras: " A nova História Cultural, contempla os conflitos e as estratificações sociais, dando prioridade à construção histórica a partir das ações e comportamentos das massas anónimas".
Mas a infância de Bento da Cruz, não foi muito diferente das demais crianças da sua aldeia, a sua vida, sim: "Foi pastor de gado, montou a cavalo, trabalhou no campo, estudou medicina e foi médico de profissão. Teve intervenção política, pois foi deputado, criou e dirigiu um jornal desde o 25 de Abril de 1974, até à sua morte, em 25 de Agosto de 2015".
Mais, numa síntese de vida: "Homem de letras e analista da sociedade rural do seu tempo, cumpriu a sua trajetória de escritor, acompanhando a par e passo os seres humanos que nasceram dentro da mesma condição e com os quais compartilhou experiências de vida no seio de uma pequena comunidade rural de montanha, registando e dando testemunho das formas de viver e de pensar, dos sonhos, ideais, crenças, amizades, deslumbramentos, fracassos, sofrimentos e traumas da sociedade rural, frágil e em acelerada desagregação social, perante o choque de um presente formado por comportamentos, valores e atitudes que impõem respostas novas, face aos desafios atuais, marcados por instantes de incerteza, pouco reveladores de um futuro promitente".
Porém, no paradigma do paraíso da infância e tal como dizia Garcia Marques: "a vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda, para contá-la".
E conta-a, António Chaves:  
A aldeia de Peireses de antigamente, a região do Barroso ficcionada pela pena de Bento da Cruz: "planalto ou meseta, assente em quatro serras principais e respectivos contrafortes: Larouco a Norte, Alturas a  Nascente, Cabreira a Sul e Gerês ao sol-posto".
Uma análise crítica da história e da economia da região: "uma terra, uma língua e uma história".
A sua aproximação à Galiza, à mitologia celta e a Breogan (fundador da nação galaica), à chegada dos Suevos, Romanos, Visigodos e Muçulmanos, aos seus habitantes autóctones Iberos, para falar na Ibéria, sua geminação e povoamento, à alta Idade Média, formada pelos Condados Galego e Portucalense, até à independência deste.
Fala-nos do idioma e da língua portuguesa e galega que: "Durante muitos séculos, desde o reino dos suevos, no século V, cuja capital era Braga, até ao rei Garcia, no século XI, cujos domínios se estendiam até ao rio Douro, nós fizemos parte de um mesmo povo, com as mesmas crenças, as mesmas leis, os mesmos usos e costumes, a mesma língua "  até ao domínio dos Filipes II, III e IV de Espanha, e I, II e III de Portugal, como, " Perdida a independência da Pátria, os portugueses refugiaram-se na independência da língua",  já que "a partir do século XV começou a notar-se a influência da língua castelhana, e no século XVI , período de ouro da Literatura Portuguesa, a maioria dos escritores já era bilingue, como Gil Vicente e Luís de Camões".
Reanalisa o mundo rural das aldeias raianas: a aldeia dos camponeses, a aldeia de empresários agrícolas e a integração espacial, numa análise sociológica e económica da ruralidade e a centralidade da obra de Bento da Cruz dos anos trinta do século passado, que é realizada em linguagem e conteúdo emocional, "na descrição das personagens que não se podem deixar de amar".
Aliás, este livro de António Chaves, no subconsciente da sua narrativa, é fundamentalmente, no meu parecer, uma manifestação de amor e saudade às raízes, à terra onde se nasceu, e é também, simbolicamente, o grito, ou uivo do lobo das serras que protegem o Barroso, na amarfanhada revolta contra a situação em que presentemente essa terra amada se encontra, e que os diferentes poderes do Estado e outros, mais contribuíram para o empobrecimento e infelicidade do seu povo.
É, em suma, um Manifesto de Liberdade! A sua liberdade, em defesa do Barroso!
Reinventa a história, a memória e a identidade da Terra do Barroso, desde os castros (crastos), à idade do bronze e do ferro e às suas reflexões filosóficas sobre a história dos Seres Humanos e evolução civilizacional: "Era do caçador e coletor, Era agrícola, Era industrial, Era da informação, Era do conhecimento e Era da sabedoria", pela liberdade de escolha de cada uma das pessoas.
Com alguma profundidade, analisa o Mundo Celta: a sua língua, organização social, religião, a sua fixação na Península Ibéria e chegada na Idade do Bronze.
Passa à Romanização: "difusão da língua latina, generalização dos cultos religiosos e das formas artísticas, presença militar, criação de importantes centros populacionais e o estabelecimento adequado de uma rede viária", para além da conquista da Península Ibérica e razões para a mesma (reservas minerais de ouro, prata, cobre e estanho).
Segue-se o impacto das imigrações bárbaras no Norte de Portugal, como do povo Suevo e Visigodo e da importância da Crónica de Idácio (Cronicão), bispo de Aquae Flaviae (Chaves) entre 427 e cerca de 470.
O Domínio Muçulmano da Península Ibérica e a Reconquista Cristã.
Para, na sua globalidade e complexidade, nos falar da construção da identidade do povo do Barroso: força de carácter e relacionamento fraterno.
O território linguístico e cultural, os dialectos portugueses setentrionais (como o dialecto barrosão), para parafrasear Mendez Ferrin, no seu prefácio à versão em galego do romance A Loba, de Bento da Cruz ... "serão muitos os leitores a deixar a última página... com "lágrimas de unção e tristeza". Nos seus peitos viverão sempre, sempre, os personagens terríveis deste romance destinado a ficar como uma firme referência", tal como os Apontamentos da Biografia de Maria Manta e seus inúmeros filhos de pai incógnito ou zorros.
E que dizer, dos vários retratos da aldeia de Peireses dos anos 30? Como: a chegada de uma professora; a paisagem silvo pastoril e agrícola; a casa do lavrador; os conflitos entre aldeias vizinhas; carta do padrinho e desilusão da sua vida de emigrante na América; a estratificação social; a actividade económica que sustenta a presença humana: as matanças e a exploração do volfrâmio; a música de Parafita; a escola de Gostofrio; a Guerra Civil de Espanha (1936-1939); memórias antigas de Natal, tempo do Seminário ou o velho Jandias, entre outros.
Segue-se depois um capítulo sobre "O Barroso na pena de outros escritores"... como Ferreira de Castro (1898-1974), Frei Luís de Sousa que descreveu a visita pastoral do Bispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, depois do regresso do Concílio de Trento ou de Camilo Castelo Branco no seu romance  Doze Casamentos Felizes, que ironicamente é criticado por Bento da Cruz no seu livro Camilo Castelo Branco, por Terras de Barroso e Outros Lugares, referindo que "nunca tenha subido às Alturas do Barroso, com mula ou sem ela".
Mudando de assunto, como que uma quebra do conteúdo ou desorganização na organização do tema, talvez para justificar o seu pensamento e a visão da actual realidade, não tão longínqua do século 19, António Chaves, passa para um capítulo designado "Fatores Portadores de Evolução", entrando na "Educação e a Escola" e, nas "Melancólicas reflexões sobre a Instrução Pública", tendo por base a análise acérrima ou ferozmente crítica e irónica, sobre o papel das Autarquias (Câmaras Municipais) e respectivos Vereadores, em Eça de Queiroz, num artigo publicado em 1872, após uma série de dados estatísticos relativos à Instrução Pública em Portugal, acabando por dizer que "A instrução em Portugal é de uma canalhice pública! Que o actual Governo volte os seus olhos, um momento, para este grande desastre da civilização!" Ao que António Chaves concluiu, sublinhando Riccardo Petrella, que os "investimentos na educação têm forçosamente um efeito de longo prazo, em termos de desenvolvimento económico e social" e apela dramaticamente a que o mundo de hoje, necessita de "líderes sociais" (e verdadeiramente políticos, líderes da polis, causa pública, digo eu) e termina com o fenómeno da superioridade ilusória, efeito Dunning-Kruger, que consiste no "carinhoso apelido de "idiotas confiantes"".
Entrando na última parte desta obra de António Chaves, que é dividida em 2 capítulos, sendo, no meu entender, a mais política, pela sua análise clarificativa e indutora de críticas, a considerar: Baldios em Portugal, em período de transição, e, a Reinvenção dos Bens Comuns.
No primeiro capítulo, destaca os Meandros do Poder no Estado Novo, nas suas alianças com a alta finança, e as consequências para a economia agro-pastoril; o Plano Florestal e a construção de Barragens; a Junta de Colonização Interna e a criação de Colonatos, bem assim os Projectos de Aproveitamento dos Baldios em Montalegre.
Critica a injustiça social dos elevados salários dos CEO (nomeadamente da EDP) em comparação com o salário mínimo nacional (SMN) e os investimentos estrangeiros (China), para dizer: " verdadeiramente insuportável é a descriminação, sempre desfavorável ao mais frágil, ao mais pequeno - uma constante da nossa história".
Como eu comungo com ele, esta análise! Uma frase demolidora e tão verídica! A realidade da vida das pessoas pobres, carentes, exploradas e abandonadas, é muito mais discriminatória, forte, intensa, desce mais fundo e ecoa mais alto, que todas as palavras que se possam dizer!
Entremeios, lembra que "Os desequilíbrios estruturais em que hoje vivemos têm a ver com decisões concretizadas nos dois últimos séculos" e invoca Aquilino Ribeiro em Quando os Lobos Uivam no qual afirma que: " A serra é dos serranos desde que o mundo é mundo, herdada de pais para filhos. Quem vier para no-la tirar, connosco se há de haver".
E o que são baldios? Relembra as Ordenações Manuelinas, século 16, livro 4, titulo 67, e, refere Bento da Cruz em respeito aos mesmos "... 80 % da matéria-prima que sustenta a economia local é produzida de forma espontânea no monte",  pois é o monte que fornece a lenha; os matos para as cortes dos animais e estrumeiras, que se convertem em fertilizante, o pasto para o gado miúdo e gado maior ou bovino.
Novamente, insiste na crítica social e política, em como "certos privilegiados se situam acima da lei, alheios à responsabilidade social imanente a toda a organização moderna e responsável; e tudo isto porque julgam que esta população, sendo frágil e desprotegida, deixa de ter capacidade para reivindicar, tal como presentemente sucede a algumas categorias profissionais e aos reformados dos serviços públicos" e acentua uma crítica acérrima ao Regime Vigente, mesmo após o 25 de Abril, já que, como diz José Mattoso  "o governo do povo favorece quem já tem o poder" e mais "sendo bom conselho estar atualizado com os factos, falta aqui ainda um dado importante: a EDP fechou o ano de 2012 com lucros de mil, e doze milhões de euros, praticamente um terço do preço pelo qual foi inicialmente vendida à China. Mais palavras para quê? " "Meus Caros: negócios da China é ao que certos iluminados portugueses se consagram, em nome do povo, e na defesa das suas legítimas aspirações..." e no Barroso "Foi um fartar de vilanagem, enquanto o povo aturdido com o que acontecia ao seu redor ficou incapaz de ordenar o pensamento e de saber como reagir a tanta desgraça junta".
Pois, o que dizer mais? Como soltar as amarras que nos prendem a tanta angústia e desilusão vivida?
Passa depois à descrição e apresentação das 5 colónias no concelho de Montalegre e ao número de casais que albergava cada uma delas e as colheitas agrícolas que as orientavam, como a batata de semente.
Por último, o capítulo da Reinvenção dos Bens Comuns, numa tentativa da descrição das causas da pobreza da população do Barroso e da sociedade industrial, e o surgimento do proletariado, invocando a obra e investigação de Elinor Ostrom, primeira mulher distinguida em 2009 com o Prémio em Honra de Alfred Nobel para a área das Ciências Económicas, que concluiu que a " propriedade comum pode ser gerida com sucesso por associações dos próprios interessados", diga-se, criação de cooperativas, quer de carácter micro e macro, devidamente organizadas e regulamentadas, e não pensarmos que as gestões privadas ou estatais, são as melhores e as únicas, a ter êxito.
Em síntese, transmite, como conclusão, ao Resgate da Memória:
. Trás-os-Montes e por conseguinte o Barroso, conservaram "ao longo da história uma identidade e cultura fortes". Mas a cultura também pode adoecer, pelo que tem de encontrar respostas adequadas aos desafios que lhe são colocados.
. Nos tempos modernos, líderes e seguidores firmam os seus papéis num pacto inconsciente. Cresce a conspiração silenciosa. Poucos são os que têm a coragem de reconhecer que caíram nessa armadilha.
. Na situação actual, " a falta de oportunidades de trabalho fez baixar as expectativas sobre o futuro. As pessoas vão perdendo a natural e habitual alegria. Crescem, em seu lugar, as preocupações e a incerteza. A incerteza é até certo ponto, uma mola que nos move, mas a partir de uma certa intensidade desencadeia ansiedade e insegurança, perde-se a coesão de grupo e destrói-se a condição básica que suporta a confiança".
Reajamos, então!
Superemos esse mutismo e indiferença!
E tal como a "A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, aprovada em 2005 pela Unesco", refere: A cultura é como uma lente através da qual vemos o mundo. A identidade de um povo, dela faz parte.
E, para além da última frase da obra de António Chaves, Barroso: Resgate da Memória na Obra de Bento da Cruz, com 248 páginas, 1ª edição, Guimarães, Editora Cidade Berço, Dezembro de 2016, ou a 2ª edição com 221 páginas, Lisboa, Âncora Editora, Fevereiro de 2017, de Vandana Shiva "é preciso colocar a pesquisa efetivamente ao serviço dos movimentos populares e rurais e não fazer apenas de conta que os estamos a ajudar", invoco, aos habitantes anónimos do Barroso, que têm construído a sua própria história, resistindo a diferentes formas de opressão, com força, coragem e determinação, um dos seus conterrâneos,
Miguel Torga, e o seu Sísifo (Diário XIII)
" Recomeça... se puderes. Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade. Enquanto não alcances não descanses. De nenhum fruto queiras só metade... E nunca saciado, vai colhendo ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar e vendo o logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças...".

Bragança, 25 de Maio de 2018
Maria Idalina Alves de Brito
(Lara de León)

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