ENSAIO
REFLEXÕES SOBRE
BARROSO:
RESGATE DA MEMÓRIA DE BENTO DA CRUZ
DE
ANTÓNIO CHAVES
ANTÓNIO CARNEIRO CHAVES,
nasceu em Negrões, concelho de Montalegre, a 20 de novembro de 1943. Licenciado
e Mestre em Economia e Economia Europeia, respetivamente, foi correspondente da
RTP e do semanário O Jornal, quando viveu na Bélgica. Foi docente do ensino
superior, empresário, colaborador da imprensa regional, escreveu monografias e
argumentos e obras ficcionais sobre o Barroso e esteve ligado a várias
associações da área da cultura. Conheci-o enquanto Presidente da ALTM.
BENTO DA CRUZ, nasceu
a 22 de fevereiro de 1925 na aldeia de Peireses, concelho de Montalegre e
faleceu na cidade do Porto em 25 de Agosto de 2015, com 90 anos de idade.
Exerceu medicina ao longo de cerca de 50 anos, mas ficou conhecido, sobretudo,
como romancista. Descreveu de forma admirável a aldeia da sua infância e como
era a vida de então – as gentes, a terra, os bichos, a paisagem, deixando-nos
imensa obra literária. Infelizmente não o cheguei a conhecer…
Que dizer então deste
livro de António Chaves?
Barroso:
Resgate da Memória na Obra de Bento da Cruz?
Para
mim, é o seu Grito de Ipiranga para
os novos tempos!
Tendo
por base a obra de Bento da Cruz, deu-lhe o seu cunho pessoal, a sua visão do
Barroso, de Portugal e do Mundo!
Mais
que uma obra de lembranças ou resgate de um autor, Bento da Cruz, "o maior
escritor do Barroso", nascido na aldeia de Peireses em 1925, este, é um
livro de história, filosofia, economia, cultura e religião, sociologia e
política, etnografia e antropologia.
Uma
reflexão da vida do Barroso, e, da sua terra natal, Negrões, na interrelação
com a obra e vida de Bento da Cruz, mas que vai para além dela?
–
pergunto a António Chaves:
Não
é a sua história evolutiva numa análise comparada com a de Portugal e da
Humanidade?
O
Barroso e suas gentes, têm uma nova visibilidade, globalizante,
interrelacionada, e não fechada em si mesma, pois o micro também é macro, e
vice-versa?
O
seu amor à sua terra e gentes, ao Barroso, levou-o a escrever sobre uma
miscelânea de temas e conteúdos, para, tal como o seu povo: "saber quem
era, para onde ía e para onde queria ir"?
Um
livro para ler e apreender até ao fim…
Porque
não dizer, tal como Bento da Cruz, que "o Barroso é um paraíso"?
Na
subjectividade de cada um de nós, temos sempre algo: lugar ou pessoa, situação,
estado emocional, que é o nosso paraíso na Terra! Podemos dizer que é utopia
distorcida, negação da visão da realidade tal como é, ou a profunda liberdade
íntima? Ou as duas coisas?
Na
vida actual e esquizofrénica de cada um de nós, emerge na sua essência esse
desejo de "mudança", porque nela habita a insatisfação dos
indivíduos.
E
porque não acentuar "a grande meta" de vida do escritor? :
"Assinalar
a sensibilidade, os sonhos, o amor, as formas de vida, a entrega ao próximo e
construir com esses materiais um verdadeiro hino à vida"?
Tal
o fez há quase um século atrás, com "rigor e perspicácia" esse
escritor realista, que foi Bento da Cruz, pela sua análise crítica e descrição
das múltiplas vidas anónimas da população do Barroso?
Como
preferenciando as suas palavras: " A nova História Cultural, contempla os conflitos e as estratificações
sociais, dando prioridade à construção histórica a partir das ações e
comportamentos das massas anónimas".
Mas
a infância de Bento da Cruz, não foi muito diferente das demais crianças da sua
aldeia, a sua vida, sim: "Foi pastor de gado, montou a cavalo, trabalhou
no campo, estudou medicina e foi médico de profissão. Teve intervenção
política, pois foi deputado, criou e dirigiu um jornal desde o 25 de Abril de
1974, até à sua morte, em 25 de Agosto de 2015".
Mais,
numa síntese de vida: "Homem de letras e analista da sociedade rural do
seu tempo, cumpriu a sua trajetória de escritor, acompanhando a par e passo os
seres humanos que nasceram dentro da mesma condição e com os quais compartilhou
experiências de vida no seio de uma pequena comunidade rural de montanha,
registando e dando testemunho das formas de viver e de pensar, dos sonhos,
ideais, crenças, amizades, deslumbramentos, fracassos, sofrimentos e traumas da
sociedade rural, frágil e em acelerada desagregação social, perante o choque de
um presente formado por comportamentos, valores e atitudes que impõem respostas
novas, face aos desafios atuais, marcados por instantes de incerteza, pouco
reveladores de um futuro promitente".
Porém,
no paradigma do paraíso da infância e tal como dizia Garcia Marques: "a
vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda,
para contá-la".
E
conta-a, António Chaves:
A
aldeia de Peireses de antigamente, a região do Barroso ficcionada pela pena de
Bento da Cruz: "planalto ou meseta, assente em quatro serras principais e
respectivos contrafortes: Larouco a Norte, Alturas a Nascente, Cabreira a Sul e Gerês ao sol-posto".
Uma
análise crítica da história e da economia da região: "uma terra, uma
língua e uma história".
A
sua aproximação à Galiza, à mitologia celta e a Breogan (fundador da nação
galaica), à chegada dos Suevos, Romanos, Visigodos e Muçulmanos, aos seus
habitantes autóctones Iberos, para falar na Ibéria, sua geminação e povoamento,
à alta Idade Média, formada pelos Condados Galego e Portucalense, até à independência
deste.
Fala-nos
do idioma e da língua portuguesa e galega que: "Durante muitos séculos,
desde o reino dos suevos, no século V, cuja capital era Braga, até ao rei
Garcia, no século XI, cujos domínios se estendiam até ao rio Douro, nós fizemos
parte de um mesmo povo, com as mesmas crenças, as mesmas leis, os mesmos usos e
costumes, a mesma língua " até ao
domínio dos Filipes II, III e IV de Espanha, e I, II e III de Portugal, como,
" Perdida a independência da Pátria, os portugueses refugiaram-se na independência
da língua", já que "a partir
do século XV começou a notar-se a influência da língua castelhana, e no século
XVI , período de ouro da Literatura Portuguesa, a maioria dos escritores já era
bilingue, como Gil Vicente e Luís de Camões".
Reanalisa
o mundo rural das aldeias raianas: a aldeia dos camponeses, a aldeia de
empresários agrícolas e a integração espacial, numa análise sociológica e
económica da ruralidade e a centralidade da obra de Bento da Cruz dos anos
trinta do século passado, que é realizada em linguagem e conteúdo emocional, "na
descrição das personagens que não se podem deixar de amar".
Aliás,
este livro de António Chaves, no subconsciente da sua narrativa, é fundamentalmente,
no meu parecer, uma manifestação de amor e saudade às raízes, à terra onde se
nasceu, e é também, simbolicamente, o grito, ou uivo do lobo das serras que
protegem o Barroso, na amarfanhada revolta contra a situação em que
presentemente essa terra amada se encontra, e que os diferentes poderes do
Estado e outros, mais contribuíram para o empobrecimento e infelicidade do seu
povo.
É,
em suma, um Manifesto de Liberdade! A sua liberdade, em defesa do Barroso!
Reinventa
a história, a memória e a identidade da Terra do Barroso, desde os castros
(crastos), à idade do bronze e do ferro e às suas reflexões filosóficas sobre a
história dos Seres Humanos e evolução civilizacional: "Era do caçador e
coletor, Era agrícola, Era industrial, Era da informação, Era do conhecimento e
Era da sabedoria", pela liberdade de escolha de cada uma das pessoas.
Com
alguma profundidade, analisa o Mundo Celta: a sua língua, organização social,
religião, a sua fixação na Península Ibéria e chegada na Idade do Bronze.
Passa
à Romanização: "difusão da língua latina, generalização dos cultos
religiosos e das formas artísticas, presença militar, criação de importantes
centros populacionais e o estabelecimento adequado de uma rede viária",
para além da conquista da Península Ibérica e razões para a mesma (reservas
minerais de ouro, prata, cobre e estanho).
Segue-se
o impacto das imigrações bárbaras no Norte de Portugal, como do povo Suevo e
Visigodo e da importância da Crónica de Idácio (Cronicão), bispo de Aquae
Flaviae (Chaves) entre 427 e cerca de 470.
O
Domínio Muçulmano da Península Ibérica e a Reconquista Cristã.
Para,
na sua globalidade e complexidade, nos falar da construção da identidade do
povo do Barroso: força de carácter e relacionamento fraterno.
O
território linguístico e cultural, os dialectos portugueses setentrionais (como
o dialecto barrosão), para parafrasear Mendez Ferrin, no seu prefácio à versão
em galego do romance A Loba, de Bento
da Cruz ... "serão muitos os leitores a deixar a última página... com
"lágrimas de unção e tristeza". Nos seus peitos viverão sempre,
sempre, os personagens terríveis deste romance destinado a ficar como uma firme
referência", tal como os Apontamentos
da Biografia de Maria Manta e seus inúmeros filhos de pai incógnito ou
zorros.
E
que dizer, dos vários retratos da aldeia de Peireses dos anos 30? Como: a
chegada de uma professora; a paisagem silvo pastoril e agrícola; a casa do
lavrador; os conflitos entre aldeias vizinhas; carta do padrinho e desilusão da
sua vida de emigrante na América; a estratificação social; a actividade
económica que sustenta a presença humana: as matanças e a exploração do
volfrâmio; a música de Parafita; a escola de Gostofrio; a Guerra Civil de Espanha
(1936-1939); memórias antigas de Natal, tempo do Seminário ou o velho Jandias,
entre outros.
Segue-se
depois um capítulo sobre "O Barroso na pena de outros escritores"...
como Ferreira de Castro (1898-1974), Frei Luís de Sousa que descreveu a visita
pastoral do Bispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, depois do regresso do
Concílio de Trento ou de Camilo Castelo Branco no seu romance Doze
Casamentos Felizes, que ironicamente é criticado por Bento da Cruz no seu
livro Camilo Castelo Branco, por Terras
de Barroso e Outros Lugares, referindo que "nunca tenha subido às
Alturas do Barroso, com mula ou sem ela".
Mudando
de assunto, como que uma quebra do conteúdo ou desorganização na organização do
tema, talvez para justificar o seu pensamento e a visão da actual realidade,
não tão longínqua do século 19, António Chaves, passa para um capítulo
designado "Fatores Portadores de Evolução", entrando na "Educação
e a Escola" e, nas "Melancólicas reflexões sobre a Instrução Pública", tendo por base a análise acérrima ou
ferozmente crítica e irónica, sobre o papel das Autarquias (Câmaras Municipais)
e respectivos Vereadores, em Eça de Queiroz, num artigo publicado em 1872, após
uma série de dados estatísticos relativos à Instrução Pública em Portugal,
acabando por dizer que "A instrução em Portugal é de uma canalhice
pública! Que o actual Governo volte os seus olhos, um momento, para este grande
desastre da civilização!" Ao que António Chaves concluiu, sublinhando
Riccardo Petrella, que os "investimentos na educação têm forçosamente um
efeito de longo prazo, em termos de desenvolvimento económico e social" e
apela dramaticamente a que o mundo de hoje, necessita de "líderes
sociais" (e verdadeiramente políticos, líderes da polis, causa pública, digo
eu) e termina com o fenómeno da superioridade ilusória, efeito Dunning-Kruger,
que consiste no "carinhoso apelido de "idiotas
confiantes"".
Entrando
na última parte desta obra de António Chaves, que é dividida em 2 capítulos,
sendo, no meu entender, a mais política, pela sua análise clarificativa e
indutora de críticas, a considerar: Baldios em Portugal, em período de
transição, e, a Reinvenção dos Bens Comuns.
No
primeiro capítulo, destaca os Meandros do Poder no Estado Novo, nas suas alianças
com a alta finança, e as consequências para a economia agro-pastoril; o Plano
Florestal e a construção de Barragens; a Junta de Colonização Interna e a
criação de Colonatos, bem assim os Projectos de Aproveitamento dos Baldios em
Montalegre.
Critica
a injustiça social dos elevados salários dos CEO (nomeadamente da EDP) em
comparação com o salário mínimo nacional (SMN) e os investimentos estrangeiros
(China), para dizer: " verdadeiramente insuportável é a descriminação,
sempre desfavorável ao mais frágil, ao mais pequeno - uma constante da nossa
história".
Como
eu comungo com ele, esta análise! Uma frase demolidora e tão verídica! A
realidade da vida das pessoas pobres, carentes, exploradas e abandonadas, é
muito mais discriminatória, forte, intensa, desce mais fundo e ecoa mais alto,
que todas as palavras que se possam dizer!
Entremeios,
lembra que "Os desequilíbrios estruturais em que hoje vivemos têm a ver
com decisões concretizadas nos dois últimos séculos" e invoca Aquilino
Ribeiro em Quando os Lobos Uivam no
qual afirma que: " A serra é dos serranos desde que o mundo é mundo,
herdada de pais para filhos. Quem vier para no-la tirar, connosco se há de
haver".
E
o que são baldios? Relembra as Ordenações Manuelinas, século 16, livro 4,
titulo 67, e, refere Bento da Cruz em respeito aos mesmos "... 80 % da
matéria-prima que sustenta a economia local é produzida de forma espontânea no
monte", pois é o monte que fornece
a lenha; os matos para as cortes dos animais e estrumeiras, que se convertem em
fertilizante, o pasto para o gado miúdo e gado maior ou bovino.
Novamente,
insiste na crítica social e política, em como "certos privilegiados se
situam acima da lei, alheios à responsabilidade social imanente a toda a
organização moderna e responsável; e tudo isto porque julgam que esta
população, sendo frágil e desprotegida, deixa de ter capacidade para reivindicar,
tal como presentemente sucede a algumas categorias profissionais e aos
reformados dos serviços públicos" e acentua uma crítica acérrima ao Regime
Vigente, mesmo após o 25 de Abril, já que, como diz José Mattoso "o governo do povo favorece quem já tem o
poder" e mais "sendo bom conselho estar atualizado com os factos,
falta aqui ainda um dado importante: a EDP fechou o ano de 2012 com lucros de
mil, e doze milhões de euros, praticamente um terço do preço pelo qual foi
inicialmente vendida à China. Mais palavras para quê? " "Meus Caros:
negócios da China é ao que certos iluminados portugueses se consagram, em nome
do povo, e na defesa das suas legítimas aspirações..." e no Barroso
"Foi um fartar de vilanagem, enquanto o povo aturdido com o que acontecia
ao seu redor ficou incapaz de ordenar o pensamento e de saber como reagir a
tanta desgraça junta".
Pois,
o que dizer mais? Como soltar as amarras que nos prendem a tanta angústia e
desilusão vivida?
Passa
depois à descrição e apresentação das 5 colónias no concelho de Montalegre e ao
número de casais que albergava cada uma delas e as colheitas agrícolas que as
orientavam, como a batata de semente.
Por
último, o capítulo da Reinvenção dos Bens Comuns, numa tentativa da descrição
das causas da pobreza da população do Barroso e da sociedade industrial, e o
surgimento do proletariado, invocando a obra e investigação de Elinor Ostrom,
primeira mulher distinguida em 2009 com o Prémio em Honra de Alfred Nobel para
a área das Ciências Económicas, que concluiu que a " propriedade comum
pode ser gerida com sucesso por associações dos próprios interessados",
diga-se, criação de cooperativas, quer de carácter micro e macro, devidamente
organizadas e regulamentadas, e não pensarmos que as gestões privadas ou
estatais, são as melhores e as únicas, a ter êxito.
Em
síntese, transmite, como conclusão, ao Resgate da Memória:
.
Trás-os-Montes e por conseguinte o Barroso, conservaram "ao longo da
história uma identidade e cultura fortes". Mas a cultura também pode
adoecer, pelo que tem de encontrar respostas adequadas aos desafios que lhe são
colocados.
.
Nos tempos modernos, líderes e seguidores firmam os seus papéis num pacto
inconsciente. Cresce a conspiração silenciosa. Poucos são os que têm a coragem
de reconhecer que caíram nessa armadilha.
.
Na situação actual, " a falta de oportunidades de trabalho fez baixar as
expectativas sobre o futuro. As pessoas vão perdendo a natural e habitual
alegria. Crescem, em seu lugar, as preocupações e a incerteza. A incerteza é
até certo ponto, uma mola que nos move, mas a partir de uma certa intensidade
desencadeia ansiedade e insegurança, perde-se a coesão de grupo e destrói-se a
condição básica que suporta a confiança".
Reajamos,
então!
Superemos
esse mutismo e indiferença!
E
tal como a "A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, aprovada
em 2005 pela Unesco", refere: A cultura é como uma lente através da qual
vemos o mundo. A identidade de um povo, dela faz parte.
E,
para além da última frase da obra de António Chaves, Barroso: Resgate da Memória na Obra de Bento da Cruz, com 248
páginas, 1ª edição, Guimarães, Editora Cidade Berço, Dezembro de 2016, ou a 2ª
edição com 221 páginas, Lisboa, Âncora Editora, Fevereiro de 2017, de Vandana Shiva
"é preciso colocar a pesquisa efetivamente ao serviço dos movimentos
populares e rurais e não fazer apenas de conta que os estamos a ajudar",
invoco, aos habitantes anónimos do Barroso, que têm construído a sua própria
história, resistindo a diferentes formas de opressão, com força, coragem e
determinação, um dos seus conterrâneos,
Miguel
Torga, e o seu Sísifo (Diário XIII)
"
Recomeça... se puderes. Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, nesse
caminho duro do futuro, dá-os em liberdade. Enquanto não alcances não
descanses. De nenhum fruto queiras só metade... E nunca saciado, vai colhendo
ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar e vendo o logro da aventura. És
homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te
reconheças...".
Bragança,
25 de Maio de 2018
Maria
Idalina Alves de Brito
(Lara
de León)
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