sábado, 30 de maio de 2020

ENSAIO: Terra D`Encontros


PEQUENO ENSAIO
À VOLTA DE
"TERRA d` ENCONTROS"

de Carla Espírito Santo Guerreiro e Lídia Machado dos Santos

Tão disperso fisica quanto unido espiritualmente, o povo judeu, ou "povo da nação", "esse povo admirável", como diz António Pinelo Tiza no Prefácio do livro Terra d`Encontros, de autoria de Carla Espírito Santo Guerreiro e Lídia Machado dos Santos, Edição de Manuela Pereira / A minha vida dava um livro, 2016, que foi expulso da terra prometida, como o foi em terras da sua diáspora, são os protagonistas desta narrativa, romance histórico, que, situado desde os finais do século 19, até finais do século 20, se passa fundamentalmente em Lagoaça, concelho de Freixo de Espada à Cinta.
"Os marranos" ou judeus da península Ibérica, sefarditas, que se viram obrigados a abandonar a lei judaica e a converterem-se ao cristianismo, mas continuando alguns a praticar secretamente o judaísmo, espalharam-se desde Rebordelo até Freixo de Espada à Cinta, e ao longo da raia do distrito de Bragança com Castela, Leão até à Galiza.
A sua Torah (Torá),  lei fundamental, constituída pelos 5 primeiros livros da Sagrada Escritura, manteve-se vigente desde a expulsão dos Reis Católicos de Espanha, apesar de muitas vezes em plena ou semiclandestinidade, pois muitas comunidades de cristãos-novos celebravam secretamente, nas 6ªs feiras à noite ou escurecer da véspera dos sábados, as cerimónias religiosas da sua doutrina.
Na similitude e paralelidade dos caminhos da sobrevivência e do espírito, do querer e poder, do trabalhar e orar, eis a contradição e face de duas moedas da vida, as duas "capas", o pão e a fé. Como era ser corajoso, forte, necessário e capaz de uma dualidade, bipolaridade de comportamentos e atitudes?
Marrano e não casher (impuro, porco), nascido do lado de lá da fronteira, Ezequiel, convencia-se a si próprio para se tornar um homem de ação.
Adonai, Deus Senhor, Bendito sejas Tu, Rei do Universo, protegei o "povo da nação", tornando-o forte e fecundo, tal como Ester sonhava ter nos seus braços Benjamim, apesar de cansada por não poder fiar, nem plantar, nem lavar, dado o estado de gravidez em que se encontrava. Tinha sorte em não ser como as outras mulheres casadas que "pariam, fiavam e choravam". O seu rebento, seria o "seu filho da mão direita", que o marido "afagaria nos braços com uma ternura de que nunca se imaginara".
Catarina também nasceu em Lagoaça nesse início do verão de 1880, após Belchior comprar uma casa e cortinha na Rua de Cima, em segredo, de mansinho, saindo de manhã e regressando à noite dos seus negócios e azáfamas quotidianas. A família atravessou a fronteira vinda de Espanha e passando por Santulhão e Carção, e, ali se fixou, já com alguma fortuna, enganando o Padre Juvenal Teixeira com o batizado da pequena, a realizar uma semana depois pela religião católica e que eles concretizaram nesse dia, pela sua religião hebraica.
Em dia de feira, com a barraca montada, Ezequiel recebeu a visita do Padre Juvenal, com 60 anos e desde os 25, pároco de Lagoaça, tendo estudado no Seminário de Braga, pois era superior ao de Bragança, ele nascido em Ligares e filho do Zé do Moinho. Queria que o raparigo (rapaz) Benjamim fizesse a 1ª Comunhão e frequentasse a igreja, principalmente a missa ao domingo, assim como toda a família. Aliás, há muitos anos que não frequentavam a igreja, desde o baptizado da criança. Ezequiel concordou perante o Padre. Interiormente, porém, ficou triste, por não ter a capacidade e a coragem de se afirmar seguidor da religião mosaica.
Na aldeia havia 3 pensões, cada uma com sua clientela específica e entre elas a inveja e a guerra predominavam, principalmente nas mulheres, donas de duas delas: Reguengos e Aninhas Fortunato. Na 1ª parava gente fina, como médicos que iam á aldeia dar consultas; na outra, os peliqueiros, onde paravam pouco tempo. A última, que era do Sr. Manuel Bastos, era a mais pobre, parecendo um albergue.
Albertino Reguengos queria conhecer mundo e cumpriu. Um dia, cansou-se dos insultos de Fátima, sua mulher, e decidiu ir para o Brasil, deixando-lhe um recado escrito em papel.
Casimira com 3 filhos de pai incógnito, decidiu deixar Poiares e rumar a Lagoaça. Trabalhava onde calhava, compelida por todos os sonhos que brotavam da sua coragem e aí lhe arranjaram casa e mais 3 filhos, todos de pais ricos, e ela, mãe pobre.
Tal como as meninas de Lagoaça que brincavam, cantavam e riam em frente à casa de Laidinha, filha dos condes Seixas de Tancredo e Silva, também ela gostaria de ter brincado em vez de ficar prisioneira na varanda ou naquela grande casa senhorial de dois pisos de grandes janelas que os senhores residentes no Porto ocupavam durante 2 meses no Verão.
O futuro de Maria de Lurdes seria bem diferente da sua infância pobre pelo cuidar dos irmãos mais novos, lhe fazer o caldo, lavar a roupa, arrumar a casa. Luísa, a senhora da casa grande, pediu a sua mãe, Casimira, que lha trouxesse para sua casa a fim de fazer dela uma mulher capaz e feliz
No paradigma do paraíso da infância e tal como dizia Garcia Marques: " a vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda, para contá-la".
Caminho no espaço e no tempo e vejo a infância de muitas de nós retratada. Pois, a terra natal onde nasci, não fica muito longe. Logo ali ao lado, no concelho de Torre de Moncorvo, Felgueiras, pouco mais de uma vintena de quilómetros. Lembro os costumes, os hábitos, as atitudes e revejo tudo isso nesse longínquo período das nossas vidas. O primeiro. Aquele que nos moldou e nos fez os seres humanos que nos tornámos, na simbologia que trás consigo a recordação e saudade da magia da infância. O que aprendemos, as nossas fontes, as nossas raízes estão lá, nesse lugar! Também lembro o sermos  as mais velhas de seis ou sete irmãos. Também o cuidar dos irmãos mais novos. Também fizemos o caldo e cozemos as batatas aos 8 anos de idade e  lavámos a roupa no tanque da Carroceira. O nosso futuro foi bem diferente da nossa infância, pelos estudos que realizámos, pelo que lutámos, pelo que nos aventurámos e conquistámos em outras terras prometidas. Em outras terras de encontros e desencontros. As nossas e de cada uma de nós, jovens outrora, porque não fomos crianças, mulheres, agora.
Adosinda também regressara à sua aldeia, após 20 anos de vida carmelita e viajar pela Itália e muitos outros países. De pé boto, fora marginalizada pela própria família, só por a verem falar com Negrão, rapaz que tomou uma vez banho na vida, como um acto sacrílego pois poderia trazer muita vergonha à família. Regressou para se tornar a alma da paróquia e de grande ajuda ao padre João, cuja maior fraqueza era o pecado da gula.
Também Juan Ribero e Angel quiseram ficar em Lagoaça. Vieram a salto do outro lado da fronteira, Masueco de Castilla y León, onde a miséria predominava em casa de sua mãe, prometendo-lhe que um dia regressaria e lhe colocaria um telhado novo. Mas antes, entrou ao serviço de Fátima, ajudando-a nos trabalhos pesados, de homem, de que carecia, após a ida do marido, Albertino, para o Brasil.
Lurdes transformou-se numa autêntica dona de casa e uma verdadeira sucessora de Luísa e Manuel de Matos. Além de ler, escrever e contar, concluindo o ensino primário, tudo o mais aprendeu: desde a vida doméstica e sua organização, até à vida do campo.
E Lurdes casou com Benjamim, numa festa de arromba. Num encontro em Terra d´Encontros. Ela, que o mais longe que foi, foi a Moncorvo, filha de pai incógnito, acolhida, criada e amada pelas pessoas da casa grande, os Matos. Ele, nascido no Bairro de Baixo, filho de sapateiro, guardador de patos e ajudante nos trabalhos agrícolas, indo trabalhar e viver em Lisboa, como Guarda Municipal, onde casou com Rebeca, que conheceu na comunidade judaica, e que veio a falecer de tifo, assim como um dos seus filhos. O outro que resistiu, Isaac, vivia no Rio de Janeiro com a família da mãe.
Era festa de Nª Srª das Graças, festa anual da aldeia num mês de Setembro. Albertino regressou para pedir perdão a Fátima, que cumpria uma promessa atrás do andor, cuja menina Adosinda tratou de tudo.
A vida continua. Os anos passam. Os acontecimentos seguem o seu percurso, o caminho que cada um tem de percorrer. O seu.
São as 3 filhas de Benjamim e Lurdes, Belarmina, Arminda e Amélia, que estudaram e casaram com as pessoas que escolheram e/ou lhe foram apresentadas, como Arminda, com Aurélio, natural de Poiares e sargento em Moçambique, e, a quem Benjamim entregou uma Bíblia que ainda hoje repousa entre as memórias da família.
Lagoaça, Terra de Encontros. De vidas simples, complexas, únicas, de judeus e cristãos. Velhos e novos. Ricos e pobres. Nobres e plebeus. Agricultores e sapateiros. Comerciantes e padres. Estalajadeiros. Emigrantes. Freiras deficientes e mendigos. De zorros e filhos do casamento...
Fecunda é a vida que desabrocha no sonho escurecido pelo tempo. Ouvi-Te Adonai no inicio da minha existência e segui-Te como apóstolo que procura a verdade da vida. Quisera ver-Te, ouvir-Te, porque Te sinto todos os dias em que me encontro a mim mesma.
Estou na terra de encontros. Estou aqui nesta terra longínqua ou tão perto da centralidade. Não só interior ou sim, mas centro, segundo novo ponto de vista. Centro e periferia. Fronteira necessária para a fuga quando necessária. A minha Pátria é todo o mundo. Toda a terra para se conquistar, habitar, trabalhar. Sonho com a terra prometida. Sonho que um dia regresso à Pátria amada. Sonho que um dia partirei e me encontrarei contigo! Mas tantos homens, mulheres e crianças do "povo da nação" para trás ficaram. Morreram ou integraram-se em outras culturas ou religiões. Foram espezinhados, torturados, expulsos de vários Países, condenados em Tribunais de Inquisição, lançados em fogueiras, mortos famintos em câmaras de gás, holocaustos de vida... Também Te negaram ou sentiram necessidade de o fazer, a fim de sobreviverem. Sentimos saudades deles. Lamentamos a sua perda. Porque são nossos. Mesmo assim, são nossos ainda. Serão sempre nossos. Um dia voltarão. O "povo da nação" terá um território, uma Pátria só sua...um País em que a liberdade, tão dificilmente conquistada, será a luz brilhante e luminosa dos seus caminhos...
Linguagem acessível, fluida, usando e abusando de regionalismos, mas que as autoras esclarecem com muitas notas de rodapé, merece ser lido e refletido, para se conhecer a história, a vida, os costumes, os hábitos, de há mais de 100 anos atrás, que percorre 4 gerações,  nessa aldeia de Lagoaça de passado, presente e futuro, do concelho de Freixo de Espada à Cinta, mas que espelha todo o nosso mundo rural, nesses actores longínquos em representação ou autores tão próximos, que sofreram as amarguras da vida, mas tiveram a coragem de enfrentar o medo e a pobreza, para partirem e um dia regressarem.
Romance em 200 páginas, escrito num trabalho de parceria entre as duas autoras: Carla Alexandra Ferreira do Espírito Santo Guerreiro e Lídia Maria Machado dos Santos, para saborear e apreender até  ao fim, conhecendo o tempo histórico, o ambiente social e cultural, a vida económica, o espaço geográfico, sociológico e psicológico, de um pequeno mundo fechado, mas que se abre para além dele, como espelho e reflexo de mais espaços e regiões tão díspares, quanto próximas.
Carla, invoca a sua herança, os seus bisavós judeus e os seus avós cristãos. Invoca e lembra, recordando com todo o amor e carinho a sua história, contando-a para todos nós, para que as memórias não se apaguem, nem fujam,  e se aconcheguem, como um abraço que as envolve e lhe diz o quanto as ama, as compreende, e, o quanto está orgulhosa delas na identificação do seu eu.
 Lídia, as mulheres da sua família, que lhe contaram histórias maravilhosas e lhe abriram a imaginação e a criatividade para continuar o seu caminho. Ela, que o quer seguir também. Não fechado no seio familiar das vozes femininas dos Machado, mas na dimensão abrangente, global, de imensas outras crianças, milhares de crianças, com direito a sonhar, com direito ao encantamento desses contos reias e imaginários, que lhes inundam o espírito de alegria e felicidade.
Obrigada, pela vossa partilha! Bem hajam, pois!
Bragança, 10 de junho de 2017
Maria Idalina Alves de Brito (Lara de León)

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