ENSAIO
SOBRE A OBRA
"A ESPESSURA DA CINZA"
DE
Anami Randa
Uma paisagem em tons de cinza com
raios de luz. Um homem. Um cais. Uma cidade. Um ancoradouro. O infinito. Uma
aldeia. Uma fronteira.
A capa de um livro "A espessura da cinza" de Anami Randa,
nome literário de Ana Miranda, de seu nome completo, Ana Paula Miranda Pires,
nascida em Bragança no ano de 1967. Formou-se em Línguas e Literaturas Modernas
pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Estudou Jornalismo, Teatro e Locução
em Lisboa. Em 1990 torna-se jornalista profissional de Rádio e Imprensa. Em
1999 integra a redação do Canal europeu multilingue de Televisão Euronews onde
exerce funções de jornalista bilingue de Política Internacional.
Tem publicadas as seguintes
obras:
. "O Diabo é um Homem
Bom" - 2012; 2015 - Edições Sem Nome - 2ª edição
. " O Último Ano do
Mundo" - ebook - Amazon.Brasil - 2013
. " A Espessura da Cinza" - ebook - Amazon.Brasil - 2014;
2016 - Edição impressa Portugal
. " Rapariga Sem Situação
Amorosa" - 2014 - Projeto contínuo Facebook
. "A Felicidade dos
Peixes" - 2015 - Edições Sem Nome
Na contra capa. " Um
escritor é acima de tudo um ficcionista de verdades insuportáveis, quer
coletivas quer individuais. As revoluções políticas mudam os países, mas será
que mudam as pessoas? Em "A
espessura da cinza" os personagens surpreendidos pela notícia da
revolução, em 1974, tentam recobrar do medo remexendo a cinza de um Portugal
sinistrado pela ditadura salazarista, antes de se moverem para o futuro".
Em nome da Direcção da ALTM de
que Ana Miranda é sócia, aqui me encontro para realizar a Apresentação desta
sua obra. Apesar de ser de Bragança, os nossos caminhos seguiram outros
percursos e só hoje nos conhecemos pessoalmente. Por isso, a dificuldade de
melhor a definir como escritora. Mas aqui me encontro junto de vós, nesta
coerência de abertura de espírito a novos saberes e experiências para juntos
aprendermos um pouco mais , já que para mim, o 25 de abril foi vivido e sentido
em plena capital do nosso País. Um pouco diferente, claro! E bem cedo! Nessa
madrugada do dia 25 e que descrevo também no meu romance histórico: "Despedimo-nos, então... ",
Porto, Papiro Editora, 1ª edição, 2009.
25 De Abril, leio, um dos poemas
mais belos de Sophia de Mello Breyner Andresen, in " O Nome das Coisas".
Esta é a
madrugada que eu esperava
O dia inicial
inteiro e limpo
Onde
emergimos da noite e do silêncio
E livres
habitamos a substância do tempo
Candedo. Aldeia raiana,
imaginada, mas que é uma aldeia do concelho de Vinhais.
Estamos a 28 de abril 1974, 3
dias de atraso da revolução, um domingo.
Ninguém ouviu a mãe quando chegou da cidade dizendo que os comunistas
estavam a queimar papéis na Praça da Sé. Só a palavra açambarcamento fez mover
Ida Brás. Um País inteiro em fila de espera: "Coitadita, o marido deve
fazer-lhe muita falta. Tão novinha, aquela filharada toda e o homem por
lá". Enquanto o Sr. Valente, merceeiro, homem devoto, praticante,
salazarista, teria de ir à missa nesse domingo. Mas o que não sabiam as
mulheres do crochet é que ela tinha Jaime e Chico para a consolarem. Do Chico
gostava dos seus beijos. De Jaime o seu encosto e das palavras proferidas
"era preciso habitar o tempo, porque desabitado ganha a espessura da
cinza. Eis a razão dos sentimentos!" E Ida o tornou seu amante, enquanto o
marido, emigrado, lhe enviava ao longo do ano pequenas remessas de dinheiro que
ela rapidamente gastava.
Uma linguagem poética, sintética,
frases curtas, usadas por Ana Miranda. Porque a palavra é vida passageira,
mesmo que se apresente ficcionada, como é o caso. Um dia pode definir uma
aldeia toda, uma cidade, um País, milhentas vidas ou uma só. E a cor também. O
cinza. A penumbra que não é branca nem preta. O silêncio. A indiferença. O nevoeiro.
A espera. O desespero dos povos. O governo dos tiranos. A marcha dos soldados.
As roupas. A fuga dos rebeldes.
Como Jaime. Tornou-se
contrabandista com o apoio de Carriço, que um dia apareceu estendido nu e sem
mercadoria nem motorizada numa das bordas do rio Maçãs por culpa da Pide, e , com
a decisão de Ida. "Não chores e ele não chorava. Não vais e ele não
ia". Chegou assim ao melhor contrabandista da rede de Quintanilha a
Miranda do Douro pelo negócio das barras de chocolate, cacau em pó, azeite,
conservas, tabaco e bebidas gasosas. Jaime era duro a organizar o tráfico e a
ditar ordens, mas só longe de Ida. A esta, só conseguia obedecer. Um dia Jaime
desapareceu. Ninguém viu. Ninguém sabia porquê. Mas na véspera tinha tido uma
discussão férrea com Valente por causa do preço da mercadoria. E no silêncio
rouco de um carro, a espera em exercício de vigilância e uma chamada telefónica
na mercearia Jaime apareceu no adro, semanas mais tarde, massacrado, meio
morto.
Continua Anami Randa com a
definição de palavras em cada capítulo. Não um nº, um título apenas, mas o
significado da palavra, como este de cinema: estabelecimento ou sala de
projeções cinematográficas. A vida de cada um de nós também é um longo continuo
de imagens de um filme.
Alberto, estudante de direito em Coimbra, filho de Isaura Raposo, em
casa de quem havia o outro telefone da aldeia, foi solto, assim o disse ela:
" ...o meu Alberto vem aí, a caminho, porque abriram as prisões".
Neto de um outro Raposo, que eram muitos, emigrante na Suíça logo após a
chegada de Salazar ao poder. Enriqueceu, mas já o seu bisavô, vindo do Porto,
fora republicano e deixou Portugal desiludido com a política. Partiram todos os
filhos. Só as mulheres e o "R" gravado nos marcos de granito ou nos
soutos de castanheiros ficou. Assim como a vivenda numa colina soalheira na
curva da chouriça, que se encheu de garotos, avós e mães. Os homens mudavam de
País, mal a barba despontasse porque a "Pátria é sustento" ou "
Devemos amar a terra onde somos livres, nação que não cuida dos seus merece
grandes traições" e, por vingança ou dinheiro lá ficaram. Alberto, filho
de Isaura, foi o primeiro em 3 gerações a permanecer no País. Herdou do bisavô
republicano reviralhista o genes da
oposição, as ideias, o fígado e o físico, e a lembrança da infância em noite de
Natal: "O poder tem obrigação de educar o povo" ou "que braços e
cabeças sem a "pólvora dos sonhos, não fazem revoluções". Este cetro
foi passado num hospital de Genebra e seu corpo ficou sepultado no talhão dos
Raposo em Candedo, Alberto de seu nome, que tanto sonhou com a democracia em
Portugal, viveu e morreu sem lhe ver a cor. Alberto, bisneto, que foi preso
pela 1ª vez em 1972, quando em Coimbra distribuía panfletos sobre a projeção de
um filme "O Ditador", culpa de Chaplin, pois Salazar não suportava os
seus risos cómicos. António, seu pai, nunca soube desses tempos. Isaura tudo
fazia para esconder os desvios do filho, mas da 2ª vez foi mais grave, pois
teve de arranjar um advogado para o defender da difusão de pornografia de
"O último tango em Paris" , desta vez por culpa de Bertolucci. Outro
culpado. Evitou o Tarrafal, mas teve de cumprir pena até ao dia 26 de Abril de
1974. Quando chegou a Candedo, já atrasado, com um saco de ajuste de contas
para os "bufos, esses filhos da mãe" já Valente não dava sinais de
vida.
Segue-se uma nova aguarela e um
novo capítulo numa mistura de cinza e luz, pesadelos e cansaços, sonhos e
esperanças, desencontros e amor. O Bastardo, que é o mesmo que filho nascido
fora do matrimónio, ilegítimo naquele tempo em que nascer nessa situação era o
mesmo que coisa ruim, excluído, miserável, filho do pecado e da desonra.
Foi Natália a culpada, pois pariu Isabelinha quando aos 14 anos caiu
nos braços de Chico, mais velho 3 anos que ela, numa manhã de "fumar da
boca", fria de inverno e da descoberta dos corpos de dois adolescentes
incompletos, muito antes de ele ter caído no leito de Ida. Uma promessa não
cumprida. Novas alcovas, novos desvios e favores, até que a mãe, com a
vergonha, desonra e falatório, lhe pediu que abandonasse a casa. E emigrou.
Soube em Paris do 25 de Abril no próprio dia, ultrapassando a submissão e a
violência, o sossego e a cozinha, o trabalho do campo, para cair ao balcão num bar de Pigalle. Mas ei-la que regressa esplendorosa
nesse dia 28 de abril no momento em que o
povo esperava Valente e a igreja estava fechada e não havia missa por causa da
revolução, duas e meia da tarde, passados 6 meses e 3 semanas da sua partida, só
possível com os 3 contos que Valente lhe deu, por lhe ter feito tudo.
Passamos pelo poema do Chico, "sem ser bonito", aquele ser bondoso
e amável que trabalhava no matadouro e era amante de Ida, com quem passava
algumas noites, pois as demais ocupava-as com Jaime ou outros, a sorrir no
escuro do quarto. Depois, o do Cemitério, e a arma escondida numa caixa debaixo
do colchão da mãe de Zezé. A pistola do pai morto pela pátria na Guerra de
Angola e enterrado aos 23 anos no cemitério de Candedo.
É que as revoluções não se fazem
só com flores ou cravos, mas também com mortos e feridos e açambarcamentos,
pelo que o povo continuava à espera que Valente abrisse a porta da mercearia
antes que alguém morresse de fome e medo.
A Mãe, um poema cantado de doçura
transformado em uma nova visão nesse domingo de 28 de abril de 1974, em que estudar e olhar para os retratos
sobre o aparador da sala significava a dor e a incompreensão, a dúvida pela
morte do pai. Zezé, 9 anos de vida, leu todas as cartas dessa caixa, à exceção
da última. Aquela que a mãe nunca recebeu e procurava há 6 anos, uma explicação
que não a oficial que lhe entregou um caixão selado com a menção "morto no
cumprimento do dever". E a guerra surgiu. A dele próprio. Porque pela boca
de Valente " - Qual guerra Srª
Vicente? São uns terroristas que andam por lá aos tiros. Querem roubar-nos o
que é nosso". Valente era a lei. Os braços, os ouvidos, os olhos, a boca
do poder. O domínio. O controle da vida de todos e de cada um.
Zezé e a sua vida anónima, como a
dos habitantes heróis de Candedo, 40 anos de história, 1974 a 2014, são
percorridos em "A espessura da
cinza" desde o período da Guerra Colonial, nomeadamente em Uíge,
Carmona, Angola, pelo pai; o 25 de Abril
de 1974 na aldeia de Candedo até 2014; últimos anos da Troika, e quando
encontrou o amor no seu berço natal, após a morte da mãe trucidada por um
comboio depois de fugir do manicómio, ou sanatório de Izeda, outro nome real
geograficamente , a vila de Izeda, mas onde não existe nenhum equipamento de
saúde com este nome, devido à sua demência, e, ao fim de uma paixão que pensava
duradoura já como estudante universitário na cidade do Porto onde cursou Direito,
após a entrada no Seminário, na penúltima intenção de ser Padre.
Reencontramo-nos com o regresso
dos retornados, a introdução e dependência das drogas, as relações afectivas e
liberdade sexual e suas nuances, a vida noturna das cidades, as ideologias
políticas, os oportunistas do poder , o desemprego, a emigração.
Uma aldeia. Uma cidade. Um País.
Uma visão poética e cinza! Tão
pouco tempo para tantas vidas! Tão poucas vidas para tanto tempo! Tantas
relações. Tantos seres se cruzam, unem e afastam, vivendo as suas próprias
vidas, no meio de outras, que são tão unas e diferentes. Tanta submissão e
resistência contida que explode como uma bomba nesse 28 de abril.
Este livro de Ana Miranda
transporta em si todas as componentes de uma narrativa ficcional de uma época,
um romance histórico, que dá gosto ler e vontade mais de ler para se chegar
depressa ao fim.
O centro da aldeia não era a paróquia, mas a mercearia do Valente. Ou
as duas, perguntamos nós? Pessoa assim
como ele, diligente, zelosa, colaborativa, controlava toda a receção e emissão
de cartas, postais, telegramas, chamadas telefónicas e estava autorizado a
riscar o que não interessava e decidir a sua entrega ou não ao destinatário. O
seu reino era a sua casa com casa de banho para a época, os seus chinelos de
quarto ,o seu quintal com pomar, as mulheres como Ida e jovens como Natália,
que assediava ou utilizava em troca de comida e favores, ou até de Pedrito,
irmão mais velho de Tomé e filho de Ida, que o considerava como pai e a quem
deixou as economias que tinha escondidas na caixa ao fundo da mercearia.
Mas não conseguiu controlar a paixão da mãe de Zezé por Jaime, e o seu
ódio "... não posso vê-lo à frente... é uma serpente a comer-nos vivos",
ou o ódio de Ida "- Tens de limpar o sebo ao sacana! Tem-nos a todos
debaixo das patas" e de mais 300 pessoas de Candedo e arredores, e nesse
dia 28 de abril de 1974, dia da Revolução em Candedo, apareceu morto no seu
quintal, com 5 facadas e onde debaixo da macieira teve uma segunda morte com 3
tiros de revólver nas têmporas. ... "fino que nem um rato, rico que nem um
porco e feio como um tição", e "feio como a noite", dizia a mãe.
Solteiro, filho único, pais severos e autoritários, que lhe "sorveram a
juventude e provavelmente a formusura".
O Padre Miguel, pároco de Candedo desde 1970, conduzia um Fiat 600 D
soube da revolução mal esta começou por telegrama da Diocese de Lisboa (entenda-se
Patriarcado), mas nada disse. Viu a fila
em frente à casa de Valente. Eram 3 da tarde desse domingo. Então disse:
"Vou dar a catequese. Fiquem onde estão. Veremos depois dentro de casa se,
entretanto, não der sinal".
Chega Alberto. Solta-se a correr
o amor de Isaura. Um magro sinistrado. Todos ficaram tristes pois absorveram 40
anos de tristeza e envelhecimento, mas Alberto gritou. "Viva a revolução!
Viva a liberdade! Viva Portugal! Vitória! E envergonhados alguns responderam
aos "vivas" e a mãe chorou. Porque sobreviver é resistir.
A infância dos garotos de Candedo foi a lixeira. Um céu aberto onde
caçavam tudo aquilo que queriam. Nessa infância de nostalgias e simbolismos Tomé e Zezé partilharam brincadeiras e
cultivaram a amizade nos livros de Mandrake
de Bufallo Bill ou do Fantasma, tesouros que guardavam no cofre-forte de
uma caixa de cartão. E um espelho onde cresceu, indagou e se examinou
minuciosamente aos 9 anos de idade, e se apercebeu da incompatibilidade dos
factos: como um homem pode escrever uma última carta à sua mulher estando já
religiosamente enterrado? O amor entre Zezé e o pai era um retângulo de
perguntas feitas à mãe e às palavras das cartas.
Eram as 4 horas da tarde. Padre Miguel impunha calma, lei, mas ninguém
obedeceu. Jaime dizia: a lei desapareceu. Arrombaram a porta e descobriram
sangue. Houve desgraça. Abriram as janelas e Ida pode ver o que Valente via
quando queria. Foram procurá-lo. A mãe respondeu a Ida "Teve o que merecia o sacana".
A criançada invadiu a mercearia e a sua revolução foram os rebuçados e
os chocolates pilhados dos frascos. Eram 5 horas da tarde. Nesse instante o
padre Miguel anunciou: Está morto!
Fez-se a investigação. Fizeram-se diligências. O Sr. Padre tentava
fazer com que tudo fosse legal. Mas a mãe nas suas costas lançou-lhe as
perguntas: Sabia o que fazia ele com as cartas vindas de África? Abria-as. E
lia-as. Riscava o que lhe apetecia. E escondia as outras. Sabia o que fazia ele
ao filho da Ida, Pedrito? E o que fez à pequena Natália antes de a pôr a andar
para França? Pôs-se neles! Como um cão numa cadela. Em cio. O padre fingiu não
ver o desvario da mãe, talvez a revolução lhe toldasse a lucidez. Ou já não
andava no seu perfeito juízo, pois punha-se na igreja a ditar cartas e a falar
com o fantasma do marido.
A guarda espanhola foi a primeira a chegar a Candedo. Os dois
Inspetores de Zamora, o mais velho e mais rude e o mais novo, magro e baixo,
Rodriguez, questionaram a mãe, o Alberto, a Ida, Pedrito, Jaime, Natália e
Chico. A mãe foi dispensada de novo interrogatório porque estava tresloucada e
perigosa e nessa mesma noite internaram-na no hospício. E fizeram o auto "
João F. M. Valente morreu de 5 golpes profundos na zona esquerda do externo
entre a terceira e oitava costela... as motivações podem ter sido por razões
políticas, económicas ou amorosas... 330 habitantes da aldeia e arredores, teriam
motivos para desejar-lhe a morte segundo confirmação dos inquiridos...". Ninguém
foi preso.
Zezé entrou no Seminário. A mãe no isolamento do hospício. Isaura numa
visita contou-lhe que Pedrito tinha fugido da casa, 16 anos, nas ruas do Porto.
Entregou-lhe uma nova carta vinda da África do Sul, trazendo o nome do pai no
remetente. Só anos mais tarde a leu. A náusea cinza invadiu-o, um
solitário, um órfão, um triste abandonado, sem pai nem mãe. Embebedou-se nessa noite livre do seminário
e pela primeira vez pousou as mãos nas nádegas de uma rapariga loira com ar descuidado.
Uma nova visita de Chico, que o matadouro tinha fechado por isso ia
emigrar para França. Entregou-lhe nova carta da África do Sul, de remetente o
nome do pai. Não a abriu.
O Padre Miguel veio buscá-lo e dar-lhe a notícia que a mãe tinha
desaparecido. Só deram pela sua falta de manhã. Caminhou 16 Km à chuva para se
lançar à linha do comboio onde foi trucidada. No Azibo. Zezé faria no dia
seguinte 13 anos.
Pois, Ana Miranda: " O rigor e o ímpeto dos que amam até
à autocombustão, até à poeira espessa da cinza "... geralmente acabam
assim, na morte.
Não conseguiu chorar a mãe, pois sentia-se só e não preparado para
compreender a função de um pai em cujos braços gostaria de existir. - Sabes,
meu tesouro, um dia serás tão forte e grande como ele. Terás dedos finos e
longos como ele e jogarão ao braço-de-ferro, assim, vá lá! Não desistas!
Zezé foi estudar para o Porto. O Padre Miguel trouxe-lhe os 80 contos
obtidos da venda da casa e dos terrenos de Candedo.
Só aos 18 anos leu as cartas do 1º cabo José Manuel da Costa Vicente
escritas em Carmona antes de morrer, nome estranho de pai... Fez o luto e
chorou no amor em Lisa, idealista, queria ser escritora ou jornalista.
Percorreu com os amigos Galvão, Costinha e Touro, as discotecas, os
bares, as praias, os concertos dos Xutos, GNR ou Rádio Macau. Também houve as
raparigas, as namoradas, o riso, as cervejas, os amendoins, os tremoços, as
histórias de engate,... esse pequeno mundo de sonhos. As campanhas políticas.
As eleições presidenciais. A semana académica. O canudo de advogado, Lisa nos
seus braços, fundar uma família, comprara-lhe um bonito anel de noivado.
Decidira que o ano de 1986 seria o ano zero da sua nova vida de adulto.
Um dia de praia. Os amigos. As namoradas. O sonho desfeito - Zezé tenho uma coisa para te dizer. É sobre
nós. Precisamos de ter uma conversa. Há coisas que desconheces de mim. Tivemos
uma história bonita, 4 anos. Quero partir, viajar. Quero acabar. Estou a amar
outra pessoa. Amo a Rita. É ela que conta.
Os sonhos perdem-se. As memórias atrasam-se. As lágrimas acabaram o
amor. Os pesadelos. A revolução. - Zezé tens de reagir. Vais filiar-te no
partido. Temos falta de um jurista.
Amigos. 1989. A política não era para ele. Também não o era o
escritório como jurista de uma empresa de imobiliário. - Tenho andado a pensar
no meu futuro. Tomei a decisão de regressar ao seminário. - Não estarás a fugir
para esquecer?
Última semana de homem livre. Festa de amigos. DJ. 6º feira. Surpresa. Lisa
que não era a sua. Estilo punk-gótica. Com um crista, argolas várias nas
orelhas. Preto nos lábios e olhos, roupa. Magreza esquelética. Em recuperação
de drogas. Com os pais a tomar conta dela. Rita tinha morrido de overdose. Lisa
obrigava-se à linguagem antiga, às maneiras antigas. Fracassado ensaio. - Somos
parte de um processo não concluído. Seremos sempre. As pessoas e os países. Ela
fazia a limpeza do tempo certo porque precisava de chegar sem atraso ao seu
destino.
Dia seguinte. Pedrito no bar com o seu sócio e amante. Há anos que não
via uma cara de Candedo. Revelações: as outras. O tio Valente. Uma das melhores
pessoas que conheceu. Um homem generoso. Ler e abrir as cartas do Ultramar eram
o trabalho dele. - Era um fascista, Pedrito. - E Jaime? Era um malfeitor, um
ladrão, um abusador. Nenhuma lhe escapava. Nem a minha mãe, Natália, a tua mãe,
as filhas do Raposo. Elas não sabiam uma das outras, mas nós, eu e o Valente,
sim! Víamos tudo!...Não é fácil a verdade...Eras uma criança...
Zezé empalideceu. O chão fugiu-lhe. Habituado à cinza (mais uma vez
esta palavra e cor tenebrosa) o seu
coração sem cor abriu a boca de fome, sede, ausência quase recaiu no regaço de
Lisa.
Pedrito não suportava ninguém na aldeia. E desabafa - A última pessoa a
falar com Valente foi a tua mãe, Zezé. Só eu sei... Ela ficou louca quando
Jaime a abandonou... Queres mesmo saber o que aconteceu naquela noite?
Não lhes conto, para não perder o
suspense...
Três dias antes da data da apresentação
no seminário, Zezé decide ir a Candedo. O seu lugar geográfico lá
estava. Mas tudo mudou, e muito. Quinze anos tinham passado... O amigo Tomé
agora provisoriamente pároco de Candedo. As chaves. A porta de casa.
A solidão dos cães introduzia agulhas nos pontos mais sensíveis da
minha carne. Não! Eram os dentes dos cães que estavam a ferrar a minha carne.
Como entraram? Dores horríveis no corpo. Calafrios. Delírios. A mãe a chamá-lo.
Cheiro a café. Três pancadas na porta. Uma voz fina, graciosa de jovem mulher.
A voz desapareceu.
Silêncio. Sou eu no silêncio do espelho. Eu a tragédia do meu país e do
pai e da mãe e de Valente e de todos os que têm o infortúnio de tropeçar na
maldade vagarosa dos predadores, dos ditadores, dos políticos... Nada faz
sentido. Falhei. Preciso de uma corda para apertar o pescoço... Depressa!
A luz. Os cabelos ... tinham a luz de mechas de fogo. Ruivos dóceis. A
magia existe. E eu amei-a loucamente...
Aqui termino esta descrição. A meio. Sem vos falar quem era ela. E o que
faziam em 2014 na apresentação do 3º livro de Lisa " Amor somente".
Para lerem este belo romance de
Anami Randa " A espessura da
cinza".
Um livro
que é uma longa declaração de amor às raízes, à terra onde se nasce e suas
fronteiras, à nostalgia da infância, aos seus habitantes anónimos que também
constroem a sua própria história resistindo a todas as formas de opressão, e,
porque não também ao País, a Portugal?
E termino
com as palavras da autora : É meu desejo
que possamos partilhar com outros a alegria de fazer bem que é a única
felicidade verdadeira.
Assim é,
Ana Miranda, Anami Randa.
Bragança,
17 de setembro de 2016
Fundação
" Os Nossos Livros".
Lara de León
(Nome poético de Maria
Idalina Alves de Brito)
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